terça-feira, 2 de março de 2010

Cena Avulsa

Mesa de bar, três copos, duas garrafas de cerveja, um prato de porção no centro, um livro com um par óculos em cima. Tom casual

A – ...Agora de cabeça eu não lembro o nome, mas o cara é muito bom.
B – Eu já ouvi falar dele, mas também esqueci como chama.
C – É alguma coisa de Oliveira.
B – Diogo de Oliveira! Não, não é...Diego...começa com D...
C – Acho que começa com R, Rodolfo...
A – Enfim, ele é muito engraçado, tem umas tiradas muito boas.
B – Antes ele fazia aquelas comédias stand up, não?
A – Isso! E manja muito de improviso. Tem horas que nem os outros atores agüentam e caem na risada com os absurdos que fala.
C – Uma hora os atores como que param a peça porque esse alguma coisa Oliveira fala muito palavrão, e resolvem fazer aquela censura com o apito...
A – Só que o apito sai fora de sincronia...
C – A frase fica: Filho da piiiiiiiii PUTA!...você devia ir assistir!
B – Talvez eu vá qualquer dia desses.
A – E o que faz o papel do prefeito e que fala tudo errado?
C – O cara solta uns Dar-vos-te-ei.
B – Como ele teria que falar, se fosse a sério?
C – Dar-vos-ei.
A – Nada...Dar-te-ei, porque ele tava falando para uma pessoa só, que era o Oliveira.
C – Ah, sei lá como é o certo, só sei que ele falou errado. Voltando ao prefeito, no dia em que fui assisitir ele escorregou na hora de subir no palanque e por pouco não caiu de cara. A platéia caiu na gargalhada, mas então ele levantou com uma cara tão sem graça que todo mundo aplaudiu.
A – Então é cena ensaiada, porque ontem aconteceu a mesma coisa. Por falar em ontem, porque você não foi?
C – Tava tudo certo de ir assistir de novo, só que uns parentes da minha mulher foram almoçar em casa e não queriam mais saber de ir embora. A gente não sabia mais o que fazer, só faltou eu colocar o pijama para ver se eles se tocavam!
A – Vamos dormir que a visita quer ir embora...
C – Teve uma hora que eu liguei a tv para acabar com a conversa, mas a mulher disse que adorava o programa!
A – Você tinha que ter colocado a vassoura atrás da porta.
C – Com eles acho que nem se colocasse vassoura, rodo e pá junto!
B – Tem uma coisa que não falha nessas horas: filosofia.
A – Quê?
B – É verdade. Não tem nada melhor para espantar visita e encerrar assunto.
C – Quer dizer que eu tinha que ter começado a filosofar?
B – Não. O melhor é falar sobre história da filosofia. Sei lá, Platão, por exemplo.
A – O difícil é puxar assunto de filosofia do nada.
B – Não, na verdade é bem fácil. Em qualquer assunto dá pra puxar algo para falar do mundo das idéias, ou do mito da caverna. A maioria já se despede nessa hora.
C – O lance então é deixar o assunto chato?
B – A questão não é ser chato. É que quando a gente começa a falar de filosofia a pessoa, mesmo que não queira, começa a pensar na vida, na condição humana, na realidade, essas coisas, e como ela é pega de surpresa, acaba sendo bem desagradável.
A – Isso é verdade...
B – E se questões como ética não derem resultado, é só atacar de Nietzche e questionar o livre arbítrio ou a efemeridade do sujeito. Garanto que 99% se manda correndo.
C – Com certeza...
B – Um pouco de neurolinguística também ajuda. Começar as frases com negativas, por exemplo, deixa de uma forma sutil o diálogo menos amistoso. Vocês precisam tentar, e vão ver como funciona.
A – Vou tentar da próxima vez. Que horas são?
B – Cedo.
A – Cedo nada. Tenho que fazer um monte de coisa ainda.
C – Acho que vou também. Alguém quer carona?
A – Eu aceito.
B – Eu vou terminar a cerveja. Pode deixar que eu fecho a conta e depois a gente acerta.
A – Combinado.
C – Tchau.
B – Tchau.

Mesa de bar, três copos pela metade, duas garrafas de cerveja, um prato de petisco no centro. Enche o copo, coloca os óculos, abre o livro A República. (Blackout)