sábado, 25 de fevereiro de 2012

A Chave

Precisa encontrar a chave. Procura pelo chão úmido, mas a escuridão é total. Qual será o tamanho dela? É possível deduzir pelo formato da fechadura – pensa – e começa a tatear as paredes. Elas também estão úmidas. O ar é quente e pesado e fica cada vez mais difícil respirar. Desliza seus dedos pelo cimento rústico com uma força exagerada e após algum tempo sente que estão esfolados. Sangram? Não consegue ver. Tenta leva-los à boca para provar o gosto característico do sangue que sempre lhe pareceu um pouco metálico, mas por alguma razão suas mãos não obedecem a seu comando. Será uma isquemia? É por isso que o trancaram ali, porque está doente? Começa então a testar seus movimentos. Todos os seus dedos parecem funcionar bem. Ele dilata as pupilas para tentar enxergar os próprios membros em meio à penumbra, mas seus olhos ainda não estão acostumados o suficiente. Decide que é necessário tentar erguer-se. Com o corpo todo tensionado faz um esforço que lhe parece sobrenatural e sente queimar todas as suas articulações. Finalmente consegue firmar-se sobre os pés. Com as mãos espalmadas a frente ensaia o primeiro passo. Tudo bem – diz a si mesmo – eu consigo andar, agora preciso encontrar a chave para sair daqui. Mas qual será o seu tamanho? Lembra-se novamente de procurar pela porta para tatear a fechadura. Dá mais um passo e permanece em silêncio, ouvindo apenas a sua respiração que se torna cada vez mais ofegante. Outro passo... mais um...e sua perna se choca com algum objeto. Não é um móvel. A consistência é diferente, como se fosse... um corpo? Durante algum tempo fica imóvel, a respiração ainda mais curta, indeciso sobre se curvar ou não sobre ele. Seria mesmo um corpo? E se a chave estivesse com ele, em suas mãos ou em suas vestes? Teria de remexer tudo? Sente náuseas, acha que vai desmaiar, mas nesse instante seus olhos conseguem distinguir uma pálida fresta de luz a apenas alguns passos: - A porta! Pela primeira vez fala em voz alta e o som lhe provoca um sobressalto. Cambaleia em direção à réstia de luz e busca a fechadura. Antes de encontrá-la, porém, sua mão alcança a maçaneta, e num movimento mais automático do que esperançoso ele a gira. Para sua surpresa a porta solta um rangido e se abre.
Paralisado, ainda com a mão na maçaneta, teve uma crise de taquicardia. À sua frente estava o corredor parcamente iluminado pela luz que vinha da janela do cômodo seguinte. Ele então percebeu que o cômodo seguinte era uma sala, a sua sala, e que aquele corredor era o que o levava ao seu quarto. Automaticamente olhou para suas mãos procurando sangue, mas elas estavam intactas. Prestou atenção no seu corpo: nada anormal a não ser o coração disparado. Acendeu a luz e viu que o objeto contra o qual sua perna se chocara era a sua própria mochila.
Os pesadelos eram constantes, mas era a primeira vez que chegava ao sonambulismo. Talvez estivesse na hora de aumentar a dose novamente. Pelo menos dessa vez não vira a cena do enterro. Seus sonhos eram todos angustiantes, mas o do enterro era de longe o pior por ser mais que um sonho, uma memória.
Sentiu a garganta se contrair. Quanto tempo havia se passado? Não saberia dizer. Lembrava-se como se fosse ontem, como se estivesse sendo agora. Um soluço. Mas do que ele se lembrava exatamente? Se lhe perguntassem não saberia explicar. Tudo desde então tinha se tornado confuso e obscuro. Quando havia sido exatamente? O próprio tempo estava desregrado. Só percebia claramente a tristeza e o vazio que sentia! Lágrimas. Iria ao médico e pediria para aumentar a dose, impossível viver assim. Impossível mesmo agora. – Vou aumentar duas gotas e aviso o médico – pensava e chorava – desse jeito acabo louco. Foi ao banheiro e puxou a gaveta dos remédios: trancada.
Um grito, uma praga. Era assim que queriam lhe ajudar? Diziam ter medo que ele se afundasse, mas eram incapazes de ver que ele já estava no fundo. Aquelas gotas eram uma escada, não uma âncora. Porque faziam isso? Porque o obrigavam a se lembrar? Quantas vezes ele ainda teria de relembrar aquele dia? Ainda chorando sentou-se no chão do banheiro. As lembranças voltavam ainda mais velozes e marcantes, apesar de confusas. Encarava a gaveta. As lágrimas corriam e o peito parecia estar comprimido. Pôs-se a revirar tudo. – A chave... eu preciso da chave...
Acordou sobressaltado. Tudo em silêncio, apenas a respiração de sua mulher ao lado. Pela claridade que atravessava a persiana percebeu que já amanhecia. Mas que horas seriam? Consultou o telefone celular no criado mudo: 06h20 – sábado. Tentava se recordar do sonho, lembrava que estava sozinho no escuro... Ergueu-se devagar para não acordar a mulher e foi lavar o rosto...parece que precisava encontrar alguma coisa... Terminou de secar o rosto e as mãos, colocou a toalha no suporte... que sensação estranha... Seus olhos se focaram na gaveta dos remédios. Maquinalmente ele puxou a gaveta: esparadrapo, antisséptico, antigripal. Como num flash ele se lembrou da cena do enterro, uma cena recorrente no próprio sonho, o sonho de um sonho. Sentiu um princípio de embrulho no estômago e correu para o quarto do filho. Espiou pela porta entreaberta e o ouviu ressonar. Tudo em paz – pensou. Foi até a sala e sentou-se no sofá com as mãos no rosto. Chorava. Tentava conter o choro o mais que podia para evitar acordar a família. A essa altura se lembrava do sonho inteiro e se sentia culpado. Ele possuía uma família, esposa e filho saudáveis que o amavam, como ele podia ter sonhos tão doentios como esse, como podia ter pensamentos tão envenenados. Acabaria por esses descontroles estragando o seu próprio lar. Ele possuía uma vida feliz e perfeita, e a manhã certamente estava linda. Era isso o que ele precisava, sentir essa manhã...vestiu uma roupa casual...certamente era uma manhã linda, e ele era feliz...pousou a mão na maçaneta...a manhã era linda demais...a porta estaria aberta?...ele possuía uma vida feliz demais...ou trancada?...perfeita demais...a chave... Paralisado, ainda com a mão na maçaneta, teve uma crise de taquicardia.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012